Imprimir esta página
cartaz criado por Rogério Duarte cartaz criado por Rogério Duarte
Publicado em Entrevistas
Lido 7062 vezes
Avalie este item
(1 Voto)

Entrevistei Rogério Duarte, em março de 1998. A matéria recebeu o título de Revelações das Raízes Orientais do Tropicalismo.


Um título pouco polêmico, ao gosto do jornal, que queria distância de qualquer eventual ideia mais turbulenta.Talvez, se minha opinião fosse levada em conta no reino da redação, fosse intitulada Eu Sou o Tropicalismo, mais provocador, do calibre de Rogério Duarte. Mas a editora tinha razão, o título dela conseguiu sintetizar o turbilhão de ideias do artista, muito bem.

É que eu gostava de impactar naquele tempo, quando a autocensura fazia estragos e era acionada para detonar qualquer iniciativa de criatividade no jornalismo. Também existia uma concepção de que um jornal conservador deveria tratar o leitor como um ignorante ou um ser superficial que detestava assuntos ou personagens controvertidos.


Globalização, educação, arte, eram palavras sem ressonância, sob o jugo da típica mentalidade limitada da mídia provinciana.
De volta ao Rogério Duarte. Considerado guru de uma geração de artistas brasileiros, ele foi um dos mentores do Tropicalismo, o movimento que representou uma grande revolução cultural no Brasil, nos anos 60. E também ficou conhecida pelo desbunde, o outro lado da moeda da repressão e do golpe militar.

Trinta anos depois, o papel de Rogério Duarte vinha à tona com uma homenagem no carnaval baiano e o sucesso do polêmico livro Verdade Tropical, de Caetano Veloso, que o mencionou umas 50 vezes, aliás, eu mesma fiz as contas quando tive o prazer de ler a obra.

Rogério Duarte, artista multimídia, esteve em todas. Por trás, nos bastidores e, muitas vezes à frente, integrando as performances de ruptura de Hélio Oiticica, concebendo os famosos cartazes dos filmes de Glauber, atuando nas mais diversas frentes do movimento como artista gráfico, músico e – importante – fazendo as cabeças, principalmente no sentido filosófico, claro. No livro, Glauber Rocha, Esse Vulcão, de João Carlos Teixeira Gomes, também tinha sido lembrado, da mesma forma que em Aspiro ao Grande Labirinto, de Hélio Oiticica, e em textos de Sarraceni, entre outros.

Na época desta entrevista, Rogério Duarte deixava de ser referência para ser protagonista e apresentar sua profunda e diversificada obra. Na conversa, falamos sobre o trabalho de criação relacionado ao do Bhagavad Gita – um maravilhoso texto clássico da cultura oriental existente há cerca de cinco mil anos –, que tinha acabado de traduzir e lançado junto com um CD, Canções do Divino Mestre, com a participação de dezenas de cantores e compositores da MPB, de Gil a Chico César.


A entrevista rendeu, ele tratou de questões que remetem ao que existe de essencial e novo no Tropicalismo, algo que ainda não foi absorvido, nem dimensionado, na sua opinião. Para o artista, o que está explícito é apenas a face folclórica do movimento. Aos poucos, explica, está começando um processo de “desocultação” de uma proposta que foi, acima de tudo, “de contestação do paradigma da supremacia etnocêntrica ocidental”. Rogério assume que gostaria de reponder ao Caetano Veloso, “apesar de ser um gênio, ele não é Deus”, provoca, e considera como maior ponto de divergência o que considera como “um certo ocidentalismo” da visão de Caetano.

A primeira noite de autógrafos do Bhagavad Gita, no Brasil, foi no Instituto de Ioga de Goiás, em Goiânia, no dia 17 de abril de 1998, com uma palestra e apresentação do músico.

NT - Como foi desenvolvido o trabalho de tradução?
RD - O livro é uma tradução desse clássico indiano milenar chamado Bhagavad Gita, que inclusive já teve outras traduções em português. Só que a especifidade da minha é que eu traduzi em versos, em forma de versos típicas da canção popular brasileira. Por isso, trechos dele foram musicados, e o livro sai juntamente com um CD, do qual participam muitas pessoas.

NT - Essa estrutura seria próxima ao Cordel?
RD - Em parte sim, a estrutura do verso é a mesma do Cordel, ou seja, o verso de sete sílabas, o heptassílabo, que é o verso típico. Tanto assim que o disco tem vários cantores de cordel que cantam, mas não necessariamente o Cordel. É o verso da Música Popular que é usado no Cordel, mas também é usado em Samba. O verso mais frequente na Música Popular Brasileira é este: o heptassílabo.


Tanto em Cordel como em geral, em Música Popular. Nesse caso do disco, como a própria estrutura é uma narrativa que tem uma certa afinidade com a literatura de Cordel, é certa a sua pergunta. Tem a ver, pode-se dizer que é a estrutura do Cordel.
Agora, tem um capítulo inteiro onde uso outra estrutura de verso, o decassílabo. Um verso mais comprido, mais erudito, que é dos Lusíadas, por exemplo. É o verso típico dos sonetos, um pouco mais difícil de trabalhar porque tem suas acentuações obrigatórias. É um verso um pouco mais complicado. Tem um capítulo que é em dez sílabas e outro todo nestes heptassílabos que se podem associar ao mesmos versos da literatura de cordel.

NT - Seu trabalho faz uma ligação entre o Clássico e o Popular...
RD - Na verdade, essa ligação sempre existiu. Tudo o que hoje chamamos de popular ou oriundo do popular... Se você vê a Música Clássica, aquelas suítes, por exemplo.
Suíte é uma série de dança, são bailes populares que são transpostos de forma erudita. Eu nunca vi muito esta oposição entre o erudito e popular. O próprio Bhagavad Gita é parte de um grande poema épico indiano chamado Mahabharata.

NT - E essa ligação com a Índia. Você viveu lá?

 

RD - Eu não vivi na Índia materialmente, mas posso dizer que vivi na Índia espiritualmente, porque sou discípulo de um discípulo de Prabhupada. Eu tenho até um nome iniciático, meu nome é Raghunatha, que significa senhor da dinastia de Raghu, que é um dos nomes de Krishna ou seus cognomes, títulos, têm milhares e milhares de nomes... E acrescido da palavra Dasa, que significa servo.


Como sou iniciado nesta tradição Vaishnava – isso poderá ser visto no prefácio do livro –, dou uma descrição da filosofia, do ponto de vista filosófico que orientou nossa tradução e tudo mais... O Sânscrito vem disso.

Eu estudei Sânscrito, todo discípulo de Prabhupada necessariamente é um estudioso de Sânscrito, é parte de nossa tradição diária o estudo dos Shastras, ou literaturas sagradas da Índia, que estudamos sempre cantando os textos no original. Inclusive é um dos objetivos que saibamos de memória uma grande parte desses versos. E eu, embora não seja um dos de melhor memória, também conheço, de memória, uma boa parte do Gita. Tanto assim que no disco tem partes em que recito em Sânscrito.

Ao longo desses anos de iniciação – comecei o trabalho em 1978 e interrompi por volta de 1980 – eu passei anos estudando bastante Sânscrito. Quando digo que estudei, estou falando da forma de estudo dentro da nossa linha. É um método em que a gente não estuda como na universidade, a gente estuda como se fosse um processo de Ioga, ou seja, a gente canta as canções, diz os mantras, ouve as aulas.

NT - Que linha é essa?
RD – É Hare Krishna.

NT - Você morava nos templos?

RD - Morei em vários templos. Eu entrei no movimento, em Salvador.

NT - Como se interessou pelo Hare Krishna?
RD - Foi todo um processo. Eu já tinha vivido em templo budista muitos anos antes, fiz parte da Sociedade Brasileira de Eubiose, também fui proposto como membro da Rosacruz, acabei não me inscrevendo, mas tive uma associação bem próxima. Em todos estes grupos, a gente procurou estudar a sabedoria hinduísta.

Como autodidata, eu vinha lendo e estudando isso há muito tempo. O Bhagavad Gita eu já vinha lendo outras traduções, desde rapaz. Em todas essas traduções esotéricas se estuda o conhecimento védico, da Índia. Pelo desejo de me aprofundar mais e mais, encontrei este grupo que é conhecido popularmente como Hare Krishna que, aliás, é conhecido e desconhecido, porque todo mundo tem uma visão folclórica do Hare Krishna.

 

 


Associa sempre àquelas pessoas que estão vendendo incenso na rua, esquecendo que é atualmente, no mundo, o maior centro de estudos da cultura védica e do Sânscrito. Inclusive o meu mestre espiritual, que é desse movimento, é PhD pela Universidade de Harvard e professor de Sânscrito Avançado na Universidade de Bertley, da Califórnia. Ele é um erudito, foi quem traduziu o Bhagavad, que continuou a obra de Prabhupada, traduzindo para o inglês os clássicos da Índia.

NT - Podemos dizer que a cultura oriental, o Sânscrito, está na base da cultura ocidental?

RD - Acho que sim. Dias desses, esteve aqui um aluno meu de Sânscrito, e ele ensina Etmologia e Linguística Comparada. Ele afirmava exatamente isto. Quem estudar o Grego, o Latim, ou qualquer outra língua clássica, tem de se reportar ao Sânscrito como a origem de tudo isso. Quase toda raiz clássica vai encontrar um correspondente Sânscrito. Quase todas as palavras, os nossos algarismos, vieram de lá, a gente pensa que é do Árabe, mas o árabe trouxe da Índia. O Sânscrito é chamado de língua-mãe, entendeu?


Essa língua-mãe, pelo menos do tronco que nós chamamos de indo-europeu, do qual fazem parte as nossas línguas, a base – digamos mais tradicional –, o alicerce de tudo é a Língua Sânscrita, que por sua vez vem do Védico. Eu, como sempre gostei de Linguística – é aquele negócio, eu quero alcançar o conhecimento védico, mas não quero simplesmente o que os caras falam –, senti necessidade de ir procurar os próprios textos antigos da Índia e no Hare Krishna tive essa oportunidade.


Prabhupada, o fundador do movimento Hare Krishna, trouxe da Índia uma série de obras que ele mesmo traduziu, mas mantendo ao lado o original, na escrita original. Como eu sou Brahmana, iniciado nesse movimento – Brahmana significa aquele que tem duas iniciações, é aquele que estudou, que se pressupõe tem uma base do conhecimento, da filosofia – eu traduzi outros livros para o movimento, como O Néctar da Devoção, já em 1978, eu trabalhava na editora, mais na área de pesquisa. Têm muitas maneiras de participar do movimento Hare Krishna.

NT - Poderia dizer que você é mais ligado à área de pesquisa por questões artísticas do que espirituais?
RD - Você pode participar como sacerdote adorador, aquele que cuida dos templos, das deidades, ou como aquele que divulga os livros ou como aquele que traduz. No meu caso, eu era um membro tradutor do movimento, pelo meu interesse em aprofundar o conhecimento e por certas coisas de caráter espiritual inexplicáveis, que se compreende por reencarnações. Tenho uma boa bibliografia do Sânscrito que vem da Índia.

NT - O que é Bhagavad Gita?
RD - É um diálogo entre Krishna, que é o mestre e Árjuna, que representa o discípulo, a alma condicionada, ou seja, nós humanos, que em determinadas situações da vida nos sentimos muito angustiados devido às contradições, dúvidas... Nesses momentos, o mestre se manifesta diante de nós, puro e para nos transmitir o conhecimento espiritual.


É disso que se trata o livro que eu traduzi com objetivo muito espiritual, além de artístico. Porque é um texto universalmente celebrado pelos maiores artistas e intelectuais da humanidade, em todos os países e de qualquer religião.


Eu comecei o trabalho em 1978, interrompi em 1980 e retomei em 1996, ou seja, 16 anos depois. Agora vou até o fim. Não foi feito assim como uma tradução qualquer, feita comercialmente. Eu estava num momento em que pude ter a disciplina toda. Porque é um trabalho que exige muita devoção, muita serenidade. É uma coisa que você tem de meditar profundamente sobre o significado de cada palavra, a intenção do verso.


E tem de estar com o estado de espírito meio monacal como estive de três anos para cá, ou seja, vegetarismo, não-intoxicação, nenhuma prática considerada pecaminosa mesmo em nível mais grosseiro, acordando cedo e tendo essa disciplina, eu tive aoportunidade de fazer este trabalho que dificilmente uma pessoa que não esteja em um processo desse faria.


Porque, inclusive, foi mais de um ano de trabalho sem nenhum pagamento, sem nada. Uma coisa que decorria da minha própria necessidade espiritual de me aprofundar no texto, em um estudo sistemático, convivendo com cada verso, procurando também a métrica adequada, entende?

NT - A ideia do CD, como surgiu?
RD - Quando o livro estava pronto, a editora sugeriu que eu fizesse também um disco, já que eu não era um autor muito conhecido. Era uma maneira de tornar o produto mais atrativo. Então foram mandados para muitos astros da MPB trechos das traduções, que eles musicaram.


É muita gente entre intérpretes e compositores, todos participando espontaneamente, de uma forma não-comercial. Aí você têm Gilberto Gil, Gal Costa, Elba Ramalho, Tom Zé, Titãs, Lenine, Chico César. É uma turma muito grande, são 32 faixas, sendo que algumas foram interpretadas pelos próprios compositores e outras por intérpretes. Entre músicos e instrumentistas, há a participação de quase cem pessoas. E todo mundo aderindo voluntariamente. O disco – dizem todos – está muito bonito. Eu faço uma antologia, uma escolha de alguns versos. O livro vai ser lançado acompanhado deste CD.

NT - Qual o nome do CD?
RD - O nome da tradução do Gita é Canção do Divino Mestre, então o nome do CD ficou Canções do Divino Mestre.

NT - Qual e a participação de Caetano Veloso no livro?

RD - O prefácio é dele, que também ajudou na revisão, sobretudo da poética, da métrica. Teve outro revisor, Carlos Rennó, de São Paulo. Eles foram meus dois braços direitos.

NT - Por falar em Caetano, no livro Verdade Tropical, ele fala umas 50 vezes em você e, na biografia de Glauber Rocha, de João Carlos Teixeira Gomes, você também é citado.
RD - Olha, se você pesquisar, tem mais, dezenas de livros. Ficou na moda falar de mim.

NT - E o que você acha disso?
RD - Interessante. Até uma certa idade, eu vivi mais ou menos oculto, de repente, começaram a lembrar de mim. Eu citaria, também, os livros de Carlos Callado, do Gil, do Antônio Risério, do Luiz Carlos Maciel, das Cartas do Glauber, do Sarraceni, do Hélio Oiticica – Aspiro ao Grande Labirinto –, do Frederico Morais.
De repente, foi se criando uma bibliografia, uma coisa que nem me envaidece, mas que de certa maneira eu acho justa.
Porque eu fui uma pessoa muito engajada no movimento artístico brasileiro. Não só na Tropicália, como no Cinema Novo, no Concretismo, em todos os movimentos da vanguarda brasileira participei muito ativamente e como sempre fui um militante, nunca me preocupei assim com essa coisa do astro. Na verdade, até fugi disso. E também aconteceram fatos na minha vida, como a prisão e torturas, em 1968.

NT - Cacá Diegues também fala sobre este assunto numa carta ao Glauber. Foi em função disso a mudança de perspectiva em sua vida. Você era comunista...

RD - Eu acho. Por conta disso, em relação à vida, o fato da prisão e das torturas primeiro me levou a uma crise psicológica muito grande. Foi um caso inédito, eu fui a primeira pessoa de classe média que foi torturada e denunciou os torturadores. Isso criou uma situação em que eu tive de ir para a clandestinidade porque fiz as denúncias, tive de me tornar uma pessoa anônima.


Eu era muito mais na mídia até a prisão. Depois da prisão eu tive... é aquilo que dizem, Quarta-Feira de Cinzas no País, muita gente se tornou exilada, então foi um período de morte, de degredo, que nós experimentamos. E uma ressurreição recente, consequência do processo de redemocratização. Com o depoimento de pessoas da época, vem se esclarecendo uma série de coisas que estavam ocultas, como a minha participação nessas coisas todas.
Sempre fui uma pessoa muito falante, a minha militância se dava muito assim, como um profeta da palavra. Aquela pessoa que chega pro Glauber, pro Caetano, pra todo mundo e participa de todas as discussões ativamente. Sempre tive assim uma postura de reserva, porque sempre achei que o artista, além da participação social, deve ter uma obra sua, pessoal. Eu nunca quis aparecer se não fosse associado à produção de uma obra e como fui sempre muito produtivo... Eu produzi muito na área das artes gráficas e por isso fiquei mais conhecido na época. Mas havia todo um outro trabalho de escritor, poeta...

NT - Você planeja lançar logo outros livros?

RD - A partir do Gita, planejo lançar o resto da obra.

NT - E na área da música?
RD - Com esse disco, adquiro mais 32 parceiros. Eu também sou músico, sou violonista erudito, estou preparando um disco. São facetas, fica difícil me entender, “qual é a desse cara?”. Bom, Leonardo Da Vinci era o quê? São pessoas que têm esse tipo de personalidade, muiltimídia, entende? Isso também ficou difícil de ser entendido devido ao tipo de cultura tradicional brasileira, onde todo mundo tem de ser rotulado. Fui uma pessoa pouco compreendida devido à minha atuação ser muito diversificada.

 


E eu próprio, na minha complexidade e problemas psícológicos, demorei muito para amadurecer. Devido a essa situação da prisão, eu passei dez anos praticamente isolado, vivendo em fazenda. Tive de aprofundar meus estudos, eu sempre gostei da ideia de uma cultura sólida, profunda. Não ser esse tipo de intelectual de bar que cita todo mundo, mas não conhece nada seriamente.

NT - Você atua na área acadêmica?
RD - Sou professor universitário, trabalhei em várias universidades. Atuo tanto na área de Ciência como na área de Arte.

NT - E o jogo de xadrez?
RD - Sou especialista em xadrez, fui diretor da Federação Brasiliense de Xadrez, traduzi livros de xadrez, desenvolvi todo um sistema de design de peças de xadrez e de ícones gráficos para partidas de xadrez, escrevi trabalhos sobre a história do xadrez. A minha mente é muito voltada para o conhecimento hinduísta.
Esse é o jogo predileto de Krishna e todo o Mahabharata se desenvolve a partir da história de uma partida de xadrez.

Eu editei uma revista de xadrez, em Brasília, chamada Lance. Até traduzi sonetos de Jorge Luís Borges sobre xadrez mostrando esse caráter esotérico, profundo, do xadrez. O meu interesse vinha muito desse lado, na verdade de um desejo de buscar uma fundamentção. Isso vinha desde o Tropicalismo: um desejo de transcender, de superar o paradigma cartesiano-materialista.


NT - A partir da experiência de vivenciar intensamente o movimento cultural brasileiro ao longo de décadas, como você o avalia hoje?


RD - Bom, quando se fala hoje, o hoje para mim é, pelo menos, esta metade do século. O meu hoje começou no fim dos anos 50 e continua até agora. Por exemplo, eu estou lançando o meu primeiro livro.
Porra, ainda não lancei. Então, eu sou um estreante. Quando se diz hoje, eu não vejo muita diferença do ontem. Pelo menos a partir da minha geração para cá, que ainda está viva e atuante. E como sou muito dedicado à produção artística, à minha própria e à dos meus parceiros, eu não sou assim um crítico. Acho tudo maravilhoso, tudo que tem acontecido, desde que houve essa revolução brasileira nas artes, que continua até hoje, tem aparecido muitas pessoas maravilhosas. No meu disco mesmo, você vai ver que vai desde os velhos baianos até o rock de Cássia Eller. Eu estou juntando ali, passado, presente e futuro. Eu não sei como responder a essa pergunta.

NT - Hoje tem aquela história de que você é um dos pais do Tropicalismo. O que acha desse título?
RD - Indiferente pelo título em si.

NT - Caetano, em Verdade Tropical, considera-o um dos pensadores, um dos teóricos, digamos, do Tropicalismo, há 30 anos...

RD - Aí é que está, Caetano é o começo de um processo de desocultação, de revelação, de esclarecimento das coisas. Mas muita coisa ainda falta, porque acontece que a própria celebrização de algo simplifica muito. Hoje em dia, todo mundo vê o Tropicalismo como um Movimento da Música Popular Brasileira e esquece as
outras dimensões do Tropicalismo ligadas à cultura mais erudita, à parte das Artes plásticas, da Filosofia e do Cinema.

NT - Você participou de performances com Hélio Oiticica?
RD - Claro, claro. Então, hoje me interessa escrever muito também, como esta entrevista que eu estou dando, e esclarecer outros aspectos, porque todo mundo pensa que conhece o Tropicalismo e o Tropicalismo, em parte, foi abortado.
Ele teve esses artistas que se celebrizaram, notabilizaram, mas teve também gente que teve contribuição importante e que não é conhecida. Virou esse oba-oba, essa apoteose tropicalista, mas há um desconhecimento. Tem um texto do Hélio Oiticica em que ele diz isso. Está todo mundo agora falando em banana, só ficou do Tropicalismo a parte folclórica.

NT - E era justamente o que o movimento mais condenava.

RD - Exato.

NT - Isso é porque existe uma ligação entre os Tropicalistas e os Modernistas, a Antropofagia, os conceitos de Oswald de Andrade?

RD – Também é. E não só com isso, isso o Caetano e o Gil falam, mas as teorias e as ideias básicas do Tropicalismo ainda são, em grande parte, desconhecidas. Então, agora está no momento de essas coisas virem à luz.
O próprio trabalho de Hélio de Oiticica, que ficou celebrizado porque ele morreu, ninguém conhece, porque é um tipo de arte erudita, de que o povo gosta e que consome em parte, mas não sabe o que é. Daí porque eu tenho vontade de falar sobre o assunto. Acho que os livros do Hélio deveriam ser melhor lidos. E outras coisas mais, como o trabalho do Glauber.

NT - O que estava por trás do Cinema Novo?

RD - Por trás de tudo isso, da discussão artística brasileira, existe um conjunto enorme de ideias que não foram nem compreendidas, nem absorvidas. Como se uma parte da revolução não tivesse se efetivado completamente. Só uma parte superficial foi realizada. A parte mais profunda ainda está por se realizar. Por
exemplo, esta busca de novos paradigmas filosóficos, esta tradução do Gita, estão nessa linha.

NT - Então este livro faz parte desse contexto de revolução cultural?

RD - Quando você vê o trabalho do Gil em busca de paradigmas não-materialistas ocidentais, a busca do conhecimento hinduísta estava na base do Tropicalismo. Durante o movimento, estávamos colocando em questão essas coisas todas, a Teosofia, a Eubiose. Tem uma música do Gil em que ele fala: “... eubioticamente atraídos pela luz do Planalto Central das Tordesilhas” / “um objeto sim, um objeto não, um vindo do céu outro do chão”.
Naquela época, nós estávamos em profundo diálogo, eu estava fazendo parte da Eubiose, estudando já essas bases. Isso está na base do Tropicalismo, no entanto, ficou só a parte superficial.


A parte, digamos, da moda, como se fossem bananas, vitória-régia, jacaré, como diz Torquato Neto, entende?
Mas a contestação do paradigma da supremacia etnocêntrica ocidental, essa ainda falta muito para ser esclarecida. Então, todos esses trabalhos que estamos fazendo agora... É como se Deus tivesse me deixado vivo para contar a história. É uma série de incidentes que fizeram, por exemplo, que você me descobrisse e quisesse me entrevistar.


Dez anos atrás, ninguém sabia nem que eu existia. Isso propicia a ocasião de um aprofundamento maior, porque apesar de Caetano ser um gênio, um grande artista e uma grande pessoa, ele não pode ser o porta-voz único de uma coisa, porque ele não é Deus, ele também é uma pessoa como todos nós, que revela um aspecto, uma parte das coisas. Na medida em que tudo é centralizado em Caetano, isso, de uma certa maneira, faz um pouco de injustiça ao caráter coletivo do Movimento Tropicalista.


Hoje, eu sinto necessidade de abrir outras linhas de atuação, de discussão. O próprio Gil pouco fala a respeito, há toda uma linha de busca filosófica, esotérica, estética, metafísica, ou não-metafísica, há toda essa filosofia no meu trabalho, no de Hélio Oiticica, de Glauber e de tantas outras pessoas da época. Mas ficaram associados, o Glauber ao Cinema Novo; Caetano ao Tropicalismo; Hélio Oiticica à Nova Objetividade.

NT - Qual a proposta que eles tinham em comum?
RD – A ideia específica do próprio Tropicalismo, de que eu me lembro bem, que eram as atuações de vanguarda minhas e do Hélio Oiticica que serviram de inspiração e inauguraram, deram, digamos assim, o start no movimento, mas cujas propostas ficaram ignoradas.
As implicações estéticas, religiosas, políticas, filosóficas do Movimento Tropicalista ainda estão, em grande parte, ocultas. Eu fiquei um pouco para trazer, tudo o que eu fiz foi em decorrência do Tropicalismo.

De certa maneira, sou o próprio Tropicalismo, em certo sentido, porque eram os valores mais profundos das nossas inquietações que estavam, digamos assim, como material básico do movimento tropicalista.


Muito dessas coisas só estão se desenvolvendo agora. Eu diria trabalhos de caráter científico, antropológico, sociológico e tudo mais. Acho que esse negócio de situar historicamente, dizer que faz 30 anos, é uma forma de colocar uma pedra em cima de uma coisa que ainda está viva, viva e não-absorvida ainda.
Daí, eu estava brincando, vou escrever um livro chamado Mentira Tropical. Claro que é brincadeira. Tenho vontade de discutir, de até polemizar com Caetano. Eu o respeito e gosto muito dele, mas a visão dele, um certo ocidentalismo dele não é compartilhado por mim.


NT - No livro, ele conta que recusou os “caminhos” para a espiritualidade...

RD - Ele recusou. Ele teve uma bad trip de auascar, de vegetal e outras coisas mais, então o caminho das drogas, tudo, que foi um negócio que abriu mil dimensões para a mente ocidental, tudo isso é passado por cima. Então fica uma coisa meio careta do Tropicalismo. Tem de ter uma versão diferente, também. A parte que o Caetano revela é apenas um aspecto, uma pequena parcela da verdade tropical.
Ele devia ter colocado como título Aspectos da Verdade Tropical. Há outros: essa questão da espiritualidade, a busca das
drogas, de outros paradigmas, do alternativo... Outras coisas que estão aí, em outras áreas de que ele não participou.
Ele ficou circunscrito aos valores da sociedade tradicional enquanto membro de um movimento totalmente inserido no contexto, como Música Popular. Embora, de uma forma muito inteligente, ele proponha uma discussão. Ele deu o lance, mas precisa da resposta.

NT - Você vai dar a resposta?

RD - Eu não tenho a grandeza do Caetano para dar a resposta completa. Mas pretendo dar alguns aspectos, esclarecer... Esse livro meu mostra coisas que Caetano não cogitou. Tem um outro livro sobre a teoria das coisas, em que eu vou discutir toda a história da teoria da percepção, dos valores, que são aspectos da cultura tropicalista altamente eruditos, científicos, que não fazem parte do universo das cogitações de Caetano. Há coisas do Tropicalismo de que Caetano nem sabe.

NT - O livro Teoria das Coisas você vai lançar este ano?

RD - Pretendo. Estou desenvolvendo, mas estou com problemas para resolver a minha situação, talvez eu tenha de desenvolvê-lo dentro de uma estrutura acadêmica.

NT – Você está lecionando na universidade?
RD - Ainda não voltei, mas espero que dentro de pouco tempo eu já esteja em alguma universidade. Por enquanto, estou na fase de transição, tenho possibilidade de vários cursos.

NT - Quais cursos?

RD - Aí é que está, eu queria inventar uma matéria chamada... Aliás, que não tem nem nome... Uma matéria multimídia, um trabalho que eu tenho chamado Musicor, que eu comecei com o próprio Caetano e se desenvolveu profundamente ao longo dos anos. Que tenta estabelecer uma teoria neopitagórica para certos princípios estéticos que estão presentes em todas as artes.
Princípios de harmonia e desarmonia, em relação a cores e sons, com uma visão bem contestadora do conhecimento que está por aí, nas universidades e que separa tudo em compartimentos isolados.

NT - Você iria para a Faculdade de Arte?
RD - Aí é que está, tem um ditado que diz: “Não se pode pôr vinho novo em odres velhos”. Cada conteúdo novo busca uma forma nova, daí a minha própria dificuldade de encontrar.


E fundei, em Brasília, um Instituto Bhaktivedanta de Filosofia e, na Bahia, tenho um estúdio que posso transformar numa escola. Eu estou sem saber se o que posso fazer cabe em estruturas conservadoras tradicionais, ou se precisaria de uma nova estrutura para isso. Porque são novos métodos que incluem, por exemplo, essa metodologia da Ioga como processo de conhecimento.
São valores completamente diferentes dos paradigmas de uma sociedade industrial moderna, pragmática, onde as pessoas se formam para ganhar dinheiro numa determinada profissão. A minha proposta é muito mais filosófica, muito mais revolucionária, no sentido de propor uma nova totalidade, uma contestação de toda uma série de mentiras que foram se acumulando ao longo dos últimos séculos.
É preciso discutir tudo isso, levar a coisa do pensamento um pouco mais adiante, eu tenho esta inquietação, mas devido ao conjunto de coisas... Imagine uma pessoa que tem de exercitar prática instrumental diariamente, estudo de línguas clássicas e ainda trabalhos profissionais para manter a família.

NT - Você saiu da universidade na época da ditadura?

RD - Não, eu sempre dei cursos de extensão ou em instituições como o Museu de Arte Moderna do Rio, fundações culturais e outros espaços não-tradicionais. Aí é que eu desenvolvi a maior parte do meu trabalho como professor.

NT - Você não recebe direito autoral?
RD - Muito pouca coisa, tem muita coisa que eu não quis correr atrás. Porque é um processo, nesse país não se respeitam direitos autorais. De repente, não compensa. A lei nova pode até dar esperança para os meus filhos no futuro. Eu também sou anistiado político, só agora ganhei, estou na fase final do meu processo de aposentadoria. É bem provável que eu volte a lecionar na UnB, tenho um convite para a Fundação Alves Penteado, da Escola Superior de Desenho Industrial, do Rio, e tenho também da Universidade da Bahia.

NT - Qual a sua participação na fundação do Parque Lage, no Rio de Janeiro?

RD - Eu fui fundador, junto com Lina Bo Bardi. E ninguém sabe, isso foi na última gestão do Lacerda como governador. Nós fizemos o projeto de transformar a mansão dos Lage numa escola. Esse projeto teve uma fase experimental de que eu participei junto com Lina, Glauber Rocha e outros. Depois, no governo de Negrão de Lima, foi desativado. A fase embrionária foi desenvolvida pelo nosso projeto.

NT - E o Museu de Arte de Brasília, como foi sua experiência como diretor, com a burocracia brasiliense?

RD - Eu fiquei fora dela, por isso mesmo fui obrigado a pedir demissão depois, porque eu criei a Sociedade dos Amigos do Museu e consegui – através do meu trabalho diplomático – captar recursos, realizar exposições maravilhosas, foi um período de intensa vida cultural do museu. Mas eu não gostaria de voltar, eu não sou burocrata. Valeu porque voltei a Brasília, levei cursos, criei a escola de arte infantil, dinamizei as oficinas, acho que fiz um belo trabalho.


Mas eu sou muito mais um professor do que um diretor de alguma coisa, eu não gosto de cargos burocráticos. Como todo artista, eu tenho uma espécie de sociopatia e cometo muitas gafes. Na época em que eu fui diretor, ofereceram um jantar para mim, e eu não compareci, pegou mal, não sou muito de compromissos sociais, acabo rompendo algumas etiquetas e me complicando.
Em Brasília é como uma corte, as sutilezas dos jogos de poder são elevadas, então tive dificuldades, acabei me marginalizando.

 

*Esta entrevista faz parte do livro "Era Uma Vez....... Outra Vez....... mais uma vez .......e  mais outra.......", de Nádia Timm.

Última modificação em Quarta, 04 Maio 2016 23:56
Add to Flipboard Magazine.